O ajuste de contas de Cavaco (consigo próprio).
Cavaco Silva andou nas bocas da imprensa e da opinião
pública na semana passada.
Eu, por razões pessoais, só pude acompanhar a saga três dias
depois, quando o ex-presidente da República já andava a desdobrar-se em
entrevistas em tudo quanto era órgão de comunicação social, escolhido por si.
Mas vamos ao que interessa. Aníbal Cavaco Silva publicou há
um ano o primeiro volume da obra “Quintas-Feiras e outros dias”, onde já
tornava públicas muitas conversas que supostamente seriam privadas. Um dos
alvos principais era José Sócrates e a forma como a relação entre os dois se
desenrolara enquanto um era primeiro-ministro e o outro Presidente.
Agora, Cavaco volta ao ataque, argumentando que se tratam
mais uma vez de memórias, e com novos alvos na linha de fogo. Neste segundo
volume da obra, António Costa e Passos Coelho são outros dos visados.
Goste-se ou odeie-se a personagem, ela assume o papel de
político profissional mais relevante dos últimos 30 anos em Portugal. Apenas e
só pelos anos que ocupou o poder, desde ministro das Finanças, a líder do PSD,
a primeiro-ministro dez anos e presidente da República outros dez.
É certo que Cavaco tem toda a legitimidade de prestar as
suas contas aos portugueses. Tem esse direito, livre e democrático. O que se
torna inaceitável, com estas duas obras, é que torne público o que devia
continuar na esfera privada das relações institucionais.
Mais do que as revelações que faz nas duas obras sobre
acontecimentos e outros atores políticos, o que é lamentável é o ódio com que o
demonstra. Cavaco não quer prestar contas aos portugueses, como alega.
O que mostra é simplesmente que pretende prestar contas a si
próprio, deixando claro sentimentos de vingança desnecessários. Era escusado e,
nesta fase da sua vida, não precisava de se colocar neste pico da montanha para
dizer ao mundo que ele é um homem de bem e os outros não. Até porque esse juízo
não lhe cabe a ele fazer, mas sim ao povo.
Por tudo isto, o ajuste de contas que Cavaco agora completa
simboliza apenas o perfil de um homem que não sabe cumprir a palavra dada em
discursos que escreveu pelas próprias mãos durante décadas.
Falo do sentido de
Estado, da confidencialidade institucional e da reserva das conversas que
deviam manter-se privadas.
Este é o ajuste de contas de Cavaco. Não com o país, mas com
ele próprio. E é pena, porque os que o elegeram mereciam mais. Ou talvez não…
*Crónica de 29 de Outubro, na Antena Livre, 89.7 Abrantes.
OUVIR.
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