Os poderes presidenciais


Manuel Loff, historiador, fala do reforço dos poderes presidenciais
«O sistema está contaminado por rituais eleitorais e escolhas políticas»


Há quem defenda o reforço dos poderes presidenciais sobretudo em áreas como a Defesa e os Negócios Estrangeiros. Concorda?
Reconheço que está a criar-se dentro da opinião publicada e do ponto de vista político — designadamente na área do centro direita —, a ideia do reforço dos poderes presidenciais. A Constituição da República Portuguesa tem essa particularidade de dar um conjunto de poderes que são reconhecidos ao Presidente da República, designadamente em que o Chefe de Estado é, numa República, um símbolo efectivo do Estado, da própria República. Por outras palavras, naquilo que tem a ver com o seu relacionamento externo e isso passa pela política externa e pela Defesa. Em ambos os casos, a interpretação que eu faço, à luz da história do Século XX, e da lógica da racionalidade do modelo português, é que temos produzido um sistema que force ao entendimento e um equilíbrio entre Presidente da República e Governo.
E em termos práticos isso tem conduzido ao quê?
Do ponto de vista prático, sabemos que o Presidente, por exemplo, foi criando situações, às quais, lhe compete nomear chefias militares mas sob proposta do Governo. Compete ao Governo propor grandes linhas de actuação de política externa, que são obviamente aprovadas no programa de Governo pela Assembleia da República mas a verdade é que o Presidente da República tem, no fundo, uma espécie de poder de veto para as decisões que contrariam a opinião do próprio PR, como vimos no caso Jorge Sampaio/Durão Barroso na questão da guerra do Iraque. Este sistema funciona bem quando há coabitação entre um Presidente e um Governo que, sendo até do mesmo partido político ou da mesma área política, contudo, têm visões diferentes de determinadas questões, o que pode não ser difícil.
E no caso da Defesa?
Por exemplo, no caso da política de Defesa é relativamente comum os militares encontrarem na Presidência da República um eco superior das suas opiniões do que por exemplo no próprio Governo em situações de aperto financeiro. E, sobretudo, do ponto de vista da política externa, o PR tem obrigação, e em vários casos têm cumprido, de ouvir sectores de opinião pública que não estão representados no próprio Governo.

Alteração constitucional

Mas a discussão em torno do reforço dos poderes do Presidente é útil?
Qualquer alteração à Constituição nunca seria feita em tempo útil antes da próxima eleição presidencial. E devo dizer que seria de todo incorrecto fazer uma revisão que imediatamente preparasse um segundo mandato do actual Presidente. Acho que esse reforço deveria ser feito no início de um mandato presidencial ou num mandato presidencial que não pudesse ser repetido imediatamente a seguir no próximo mandato e que implicasse apenas um novo ciclo à luz da Constituição, dirigida por outra pessoa, por forma a não termos a sensação de que a alteração da Constituição era feita com um nome em vigor.
E porque é que tem surgido um pouco esta situação?
A minha interpretação é, sobretudo, em torno das consequências que a crise económica e social normalmente tem nos sistemas políticos. E, nestes ciclos de crise, historicamente, vemos novas propostas de transformação do sistema disparem em todas as direcções mas que vão, sobretudo, numa outra: numa espécie de reforço de concentração dos poderes e num elogio permanente de reforço de concentração da autoridade como se daí assegurássemos melhores condições para as resoluções dos problemas.
No fundo o ideal era ter consensos obrigatórios entre Presidente e Governo em políticas de continuidade como em áreas como a Defesa e a Política Externa?
Claro. A menos que rompamos com uma ideia, que há muito está instalada no sistema político português e que é evidentemente discutível: que deve haver sobre estas questões um amplo consenso político. Esta discussão não está a surgir no momento em que percebamos que o Presidente da República e Governo têm orientações muito diferentes nestes dois campos. Imaginemos que esta discussão — do reforço de poderes — era feita em 2003/2004. Aí teria parecido uma discussão centrada num conflito em concreto, fruto do momento. E eu não creio que a ideia do reforço dos poderes presidenciais esteja a surgir pensando em política externa e em defesa.
Então está a surgir em torno do quê?
A pensar-se noutras áreas. A racionalidade dessas propostas está centrada na ideia do modelo americano em que o Chefe de Estado é simultaneamente o Chefe de Governo. Nenhum Estado europeu, nem mesmo a única República presidencialista a sério — a França — têm esse modelo. Em todos os casos há sempre a divisão entre PR e Governo, ainda que haja, no caso francês, uma forte concentração dos poderes do Executivo no PR, que funciona efectivamente à Luz da Constituição se houver coincidência, como actualmente há, entre Presidente da República e a maioria parlamentar. E aí produz-se um Governo, directamente nomeado pelo PR, como em Portugal acontece, mas com vários conselhos de ministros, nas áreas que o Presidente entender, presididos pelo próprio Presidente.
Que consequências teria o alargamento de poderes do Presidente no que respeita ao quadro político institucional português?
Tudo depende, em grande parte, de quem for o titular de cada um destes cargos. Eu coloco a questão do ponto de vista do princípio: dentro da própria tradição portuguesa, dos 100 anos de Liberalismo no século XIX, e o que têm sido estes 35 primeiros anos da democracia portuguesa, e no âmbito daquilo que é o modelo europeu, a Europa não teve uma tradição de forte concentração dos poderes na figura do chefe de Estado. Enquanto monarca, obviamente nem enquanto Presidente da República. E não é esse o modelo europeu. Isso levaria a uma presidencialização. Do ponto de vista filosófico rejeito esta ideia porque vejo nela um evidente elogio do autoritarismo com o qual eu não me identifico. Acho que a sociedade democrática manifesta uma enorme debilidade em cair em cânticos de sereia desta natureza. Por outro lado, vejo uma outra questão, muito longe do funcionamento estrito jurídico-constitucional do sistema: uma espécie de idolatrização que tem sido feita da gestão do sistema político. Por outras palavras, as campanhas eleitorais, a gestão de imagem dos dirigentes políticos tem cada vez mais contaminado a própria gestão do sistema político. Desde meados dos anos 80, e desde Cavaco Silva em 1985, que temos vindo a assistir à individualização das escolhas. De facto, votamos em listas para o Parlamento, mas o que nos convencem é que votamos em candidatos a Primeiro-Ministro. Daí tem vindo uma solução que diz: e se o PR fosse Primeiro-Ministro ao mesmo tempo? Uma das duas figuras tem de desaparecer e as duas fundem-se numa só. Acho que uma das explicações para o que está a acontecer é o sistema político estar cada vez mais contaminado por uma lógica quase publicitária de gestão de actos, rituais eleitorais e de escolhas políticas. Isso reforça a ideia da presidencialização e da liderança, com as quais não me identifico.
E isso leva-nos à ideia de que o Presidente da República muitas vezes é um cargo vazio de sentido tendo em conta a sua limitação de poderes?
Isso é verdade. Este sistema português funciona dependendo do exercício mais ou menos intenso da gestão que é feita por cada um dos seus titulares. Eu sou da opinião que Jorge Sampaio optou, em ambos os mandatos, por esvaziar o conteúdo dos seus poderes, salvo numa única situação, em 2003. Entendo que a correcta utilização dos poderes presidenciais, aquela que a Constituição prevê, foi aquela que Ramalho Eanes e Mário Soares, sobretudo no segundo mandato fizeram, no sentido de reforçar a lógica de um PR eleito por sufrágio universal e não pelo Parlamento, como acontece na maioria das repúblicas europeias. E a de se reforçar claramente a tese de que o Presidente tem poderes a exercer e tem uma legitimidade própria. Mas se os Presidentes se comportam como a rainha de Inglaterra, cortam fitas, fazem determinadas declarações genéricas de preocupação com a situação social ou de elogio a determinados sucessos dos portugueses e de visitas às comunidades portuguesas no estrangeiro, de facto, são monarcas constitucionais. Mas a opção é deles. A Constituição não diz que eles têm que ser isso, dá-lhes outros poderes.

Nota: Entrevista da minha autoria ao professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto sobre o reforço dos poderes presidenciais e que aqui se publica.

Comentários

Anónimo disse…
Não me digas que o jornal acabou?
Ana Clara disse…
Não, não acabou. Eu é que saí.