«Carta à mãe do Miguel».
«Aos
meus filhos digo-lhes o que ouvi uma vez da sua boca; peço-lhes para não se
conformarem, para não se calarem, para não estarem de acordo comigo.
Não há receitas certas para eles, sabemo-lo bem. Eles nascem e escolhem por
onde vão – conheço irmãos amparados pelos pais que se auto-destruíram e os que,
crescendo desamparados, são motivo de espanto. Não somos apenas nós e as nossas
circunstâncias, felizmente somos mais do que isso.
Não há palavras que traduzam a morte de um filho. Ninguém as inventou
porque pertencem ao que não se prenuncia em alfabeto algum. O Miguel morreu. E
nestes dois anos sinto, podendo estar errado, que na doença foi o que a vida já
lhe diagnosticara: preparou-se para o fim com a razão, combateu até ao fim pela
mudança do mundo com a convicção.
Não o conheci bem, Helena. Coisa estranha porque, das tantas e tantas
pessoas que conheci, o Miguel foi das mais marcantes. No princípio da
adolescência convencera-me dos meus talentos e da capacidade de contribuir para
uma mudança. O meu pai, comunista sem grandes dúvidas, levou-me a um par de
congressos e chegou a perguntar-me se não desejava militar no PC. Quis saber
mais, fiz-lhe perguntas e ele, provavelmente entediado, levou-me ao Miguel que,
nas traseiras do Palco 25 de Abril, na Festa do Avante!, me perguntou pelas
convicções de uma forma pouco ortodoxa. Nunca conhecera ninguém assim, tive a
absoluta certeza de que aquele jovem adulto, pouco mais de dez anos mais velho
do que eu, ainda haveria de mudar o mundo. E, ao mesmo tempo, fiquei inibido e
com uma crise de fé nas minhas capacidades. Esperava alguém que me acenasse com
a eternidade, que me acenasse com certezas e um convicto para sempre. Só que o
Miguel era um revolucionário comprometido com a dúvida, a única maneira de
construir certezas que não desabassem de contradições e autismo. A partir daí
abandonei o plano e passei a desconfiar dos que me acenavam com a eternidade –
geralmente falham no dia seguinte. Deixei-me ficar ao canto.
Mais tarde, no Liceu Pedro Nunes, tornei-me amigo de Daniel Oliveira – os
dois fomos vice-presidentes de uma lista à Associação de Estudantes e, de
alguma maneira, voltei a rever o Miguel nos seus olhos. Já passou uma vida, mas
recordo-me que estávamos apaixonados pela mesma pessoa. O Daniel era a grande
figura política da escola. Comunista, comunicador, corajoso e discípulo do seu
filho. Quando a maioria de nós fazia a transição dos jogos para a filosofia já
o Daniel colava cartazes e separava as hostes entre os que o amavam e os que o
detestavam.
Adiante. Contava-lhe da paixão. Que foi resolvida com uma conversa num bar
de Campo de Ourique, o Bomb Shelter. No final da noite explicou-me por que era
uma perda de tempo sentir o que sentia, uma perda de tempo porque ela seria
dele. Mais valia sair rapidamente da jogada e isto se me queria proteger de um
desgosto. Bebi o resto da cerveja e tirei a viola do saco. Na minha cabeça a
coisa fazia sentido e, antes de sair, confessei-lhe sem entusiasmo que estava
cada vez mais parecido com o Miguel.
Felizmente não tive de disputar nenhuma paixão com o seu filho. Tivemos uma
ou outra forte discussão por causa do Périplo, série documental que nasceu para
a realidade numa conversa que tivemos numa cervejaria. A produtora de que era
co-sócio criou as condições para as filmagens no Mediterrâneo, mas acabei por
ter pouca importância – abandonei a empresa e foi Ana Rodrigues quem trabalhou
e operacionalizou os sonhos do Miguel.
Um pragmático de ilusões. De uma honestidade radical, como o definiu o
irmão Paulo. O seu filho, Paulo. A maioria refere as diferenças entre os
irmãos, curioso o facto de poucos sublinharem as tão grandes parecenças. No
olhar, na convicção, no sentido de humor, na sedução, no amor pela política, no
radicalismo, na estratégia.
Sim, da estratégia. O Miguel era um estratega. Desenhava os sonhos com uma
régua e um esquadro. Detestava a diletância pela diletância. Não era um
optimista militante nem um pessimista encartado. Porque os primeiros abrem o
sorriso e espalham-se na primeira curva e os segundos parecem sempre zangados
com o mundo e nunca arriscam levantar voo. Também detestava os que vivem sempre
na ideia de que o seu tempo é o pior de todos. Dos nostálgicos das portas que
não se abriram, do que não se cumpriu, de tudo o que sonharam sem o conseguir
viver. Para ele não havia nenhum dia melhor do que o de hoje. É esta a ideia
que tenho do seu filho, o primeiro que me colocou em causa e me obrigou a crescer.
E sem nunca o ter percebido.
Aprendi poucas coisas de que tenho a certeza. Talvez os dedos de uma mão
não as resumam – e isso é difícil para quem acredita em utopias, para quem
chora em tantos filmes e ri até não poder mais… Procuro o que me equilibre o
instinto de absoluto, só que as certezas escapam-se por entre as mãos. E as que
ficam, as que tenho, servem mais como exemplo de impotência do que como
garantia. As minhas pequenas certezas são o que tenho – o nunca permitir, por
exemplo, que o urgente passe à frente do que é realmente importante. Por isso,
escrevi este texto. Para lhe dizer, querida Helena, que valeu bem a pena. Não
podia ter valido mais. E para isso também não há palavras que cheguem».
Luís Osório. Sol.
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