Austeridade - o outro lado [grego e português]. Sem hipocrisias platónicas.
Hoje, o presidente da Internacional Socialista (IS), o
ex-primeiro-ministro grego Georgios Papandreou, alertou, em Cascais, na
abertura do Conselho da IS, que a crise não acabou e, se a Europa não mudar, os
sacrifícios dos portugueses, gregos, espanhóis e italianos serão em vão.
Pois bem, perante aquilo que repetido muitas vezes se torna verdade, reproduzo o diálogo
entre um grego e um alemão numa passagem de «A Mão do Diabo», o último romance
de José Rodrigues dos Santos, quando os dois se encontram numa cela de uma
esquadra em Atenas, após uma das muitas manifestações que na capital grega
ocorreram nos últimos meses. Os dados aqui reproduzidos são verdadeiros, todos
vocês os podem comprovar. E isto, que aqui deixo, é apenas uma forma simples [já escrita vezes sem conta, dita e repetida] de
lembrar o outro lado da verdade da austeridade e que muitas vezes é duro de
ouvir e reconhecer. E só pergunto, que país esta Grécia me faz lembrar, ainda que de forma
mais suave? Vocês sabem tão bem como eu…ainda assim, é verdade, a situação
portuguesa é incomparavelmente diferente da grega. Podem insultar-me, mas se
estou ao lado dos que mais sofrem com as consequências desta austeridade, em
muitos casos, cega, seria hipócrita se não concordasse com as raízes podres que
sustentam, no caso, o meu país e o dos gregos.
A Mão do Diabo, de José Rodrigues dos Santos [páginas 68, 69
e 70]:
Grego: «Vocês pensam pensam que a Europa é um feudo do Reich
e toda a gente está para aqui a ser escravizada. Pois tenho notícias para ti, ó
palerma! Isso não resultou em 1939 e não vai resultar agora! A Alemanha deu-se
mal na altura e vai dar-se mal outra vez. Os filhos dos nazis não têm o direito
de dar ordens aos gregos, ouviste? […] Transformaram o nosso país numa Dachau
económica e farão o mesmo com o resto da Europa!».
Alemão: «O senhor já reparou que o seu País ainda vive na
Idade Média. A Grécia é governada desde a Segunda Guerra por apenas duas
famílias , os Papandreou e os Karamanlis. Duas famílias! Já pensou bem? Isso
mostra o tipo de país onde estamos. Já viu que a Grécia é o Estado da Europa
que tem vivido mais anos em incumprimento da dívida? Desde 1826 que vocês têm
passado cinquenta por cento da vossa
existência em incumprimento! Como podem agora dizer que a culpa é da Alemanha?
Grego: «Vocês estão a estrangular-nos com a vossa chantagem
e a vossa austeridade cega! Se ela é assim tão boa, porque não a praticam?».
Alemão: «E quem é que lhe disse que não a praticamos? Para
sua informação, a Alemanha viveu uma crise económica e social na década que se
seguiu à reunificação. Em 2003, quando vocês estavam em pleno regabofe de
despesas descontroladas com o nosso dinheiro, o meu país congelou os salários,
limitou as contratações públicas, cortou regalias aos desempregados, facilitou
o lay-off e ajudou as empresas. E
isto sem choramingarmos, sem estender a mão a ninguém e sem receber a ajuda de
quem quer que fosse! Se hoje estamos bem é porque actuámos em tempo útil. A
nossa economia, ao contrário da vossa, não depende de fantasias irrealistas».
Grego: «Isso é tudo conversa».
Alemão: «Não, não é. O que fizeram vocês quando nós
estávamos a apertar o cinto em silêncio? Andavam a gastar à tripa-forra o
dinheiro que não tinham! Aliás, desde a década de 1980 que a Grécia vive num
mundo de faz-de-conta. Elege um governo, aumenta desmesuradamente salários e
pensões, a economia rebenta e lá vem o vosso país de mão estendida pedinchar
ajuda externa. Quantas vezes isso não vos aconteceu já? O vosso Estado era
responsável por trinta por cento do PIB em 1980 e, dez anos depois, essa
percentagem subiu para quarenta e cinco. Esse Estado grego gigantesco,
impregnado de corrupção, clientelismo e ineficiência endémicas, anda há décadas
a estrangular o vosso país. E a culpa é da Alemanha?».
Grego: «Lá vem você com o passado […] deviam respeitar-nos
porque somos o berço da Civilização ocidental».
Alemão: «E isso concede-vos direitos especiais? Isso
permite-vos gastar o dinheiro dos outros como vos dá na real gana? O vosso
passado confere-vos imunidade quando
chega o momento de prestar contas? Ser o berço da Civilização não vos
desresponsabiliza. Quando muito até vos concede responsabilidades acrescidas:
portem-se à altura dos vossos antepassados, e não como fedelhos mimados!. O
passado da economia grega mostra-nos um padrão de comportamento. A vossa
economia não tem qualquer capacidade de competir com as europeias. Vocês
entraram no euro com contas aldrabadas e a pensar que a moeda única vos ia
automaticamente resolver os problemas. Pois não resolveu. Pelo contrário,
agravou-os. A única coisa que a Grécia produz é turismo, agricultura e navios.
Além de subsídios estatais em quantidades industriais financiados pelos
impostos cobrados aos outros. Isso é que é uma economia competitiva?
Antigamente competiam através da desvalorização do dracma, que tornava os
vossos produtos mais baratos. Mas desde que entraram no euro não podem
desvalorizar a moeda. O dinheiro que vos chegou foi esbanjado à grande e à
francesa! Gastaram o crédito que o euro vos proporcionou em importações e
subsídios e a vossa economia continuou a funcionar nos mesmos termos medievais.
Aliás, nada funciona a não ser através da ilegalidade. A fuga ao fisco é
generalizada e a corrupção também. Aqui na Grécia pagam-se subornos para
receber tratamento no serviço público de saúde e pagam-se subornos para obter
autorizações de construção. Até se pagam subornos aos inspectores do fisco, ou não
é verdade? Cada família grega paga em média mil e quinhentos euros por ano em fakelaki [subornos]. Até conheço os
preços que se praticam! São 300 euros por baixo da mesa para passar numa
inspecção automóvel e 2500 euros para avançar numa lista de espera para uma
operação num hospital do Estado. E isto é apenas a ponta do icebergue da
festarola que o FMI aqui encontrou. As filhas dos funcionários públicos
reformados recebiam pensões vitalícias mesmo depois da morte dos pais desde que
não casassem. O Estado grego iniciou um programa chamado Turismo para Todos em
que pagava aos pobres para irem de férias. Os caminhos-de-ferro gregos têm
tantos prejuízos que se calculou que ficaria mais barato pagar um táxi a cada
um dos seus utentes. O país não produz nada mas o salário mínimo quando o FMI aqui
chegou andava nos 750 euros, quase o dobro de Portugal. E nas pensões? O valor
da reforma dos gregos foi fixado em 96% do seu salário, mais do dobro da
proporção alemã. A idade da reforma na Grécia era de apenas 58 anos, quando na
Alemanha chega aos 67. Vocês até davam reforma mais cedo a quem tinha
profissões supostamente árduas, de incrível dureza física como cabeleireiros,
lavadores de automóveis, técnicos de rádio, recepcionistas de banhos turcos…. A
única coisa que se vos pede é que tenham juízo e só gastem o dinheiro que o
vosso país efectivamente produz, não o dinheiro que os outros produzem. Vocês
adoptaram uma política social irrealista e decidiram pagá-la com o dinheiro dos
outros. Chamaram a essa fantasia desmedida “modernização da economia”. Quando a
realidade se impôs, o que fizeram vocês? Estenderam a mão e exigiram que
pagássemos pelos vossos desmandos! O resgate de um país que usou tão mal o
nosso dinheiro é um roubo aos contribuintes alemães […]». [Fim de citação].
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