A Estrela entranhada em mim.
Dizia Aquilino Ribeiro que «a Serra da
Estrela é uma personalidade. Descobre-se à distância de trinta léguas.
Caminha-se para ela e fica sempre a mesma, altiva, remota, coberta com um manto
real». Já Miguel Torga também viveu e respirou aquele lugar da Beira bem
profundo, e que no Inverno, dizia ele, «guarda secretamente os ímpetos,
reflectindo-se discreta no espelho das suas lagoas e
dá-se somente a quem a passeia, a quem a namora duma paixão presente e
esforçada, e abre o coração e os tesouros». Vem isto a propósito da viagem que
fiz em trabalho, na semana passada, às profundezas da serra da Estrela. As
palavras destes nossos dois vultos literários foram-me relembradas pelo senhor
João Belarmino, guardião da aldeia de Alvoco da Serra, uma aldeia encravada e
esquecida no vale da Ribeira de Alvoco, onde ainda hoje, quem lá se passeia,
ouve o correr da água que segue o seu caminho e acalma as almas mais agitadas.
Alvoco da Serra a par de Cabeça, Lapa dos Dinheiros, Loriga, Sabugueiro, Sazes
da Beira, Teixeira, Valezim e Vide integra a rede de Aldeias de Montanha do
concelho de Seia e representam, todas elas, o mais genuíno das nossas gentes.
Gentes que se mantêm à tona com pouco e dando uma imensidão a este país e ao
mundo que as visita. Por aqui andei, por aqui respirei a Biodiversidade que o
Homem ainda não alterou, nestas terras isoladas conheci o valioso património
material e imaterial que permanece vivo, por aqui provei o melhor da
gastronomia local, com o queijo à cabeça, mas também o mel, o vinho, as
compotas, enfim, entranhei-me num território que é só nosso e que importa
preservar, sob pena de um dia, como hoje por cá dizem, não haver mais país. Esta
crónica é dedicada às gentes da Beira, que ladeiam a serra da Estrela, que nela
nasceram e nela hão-de morrer. Gentes que tudo dá sem nada pedir em troca,
gentes que falam de tudo menos da palavra crise, porque desde que se lembram de
respirar, crise foi sempre onde viveram. Serve também esta crónica como um
grito de alerta para a desertificação que assola o Interior do país, de norte a
sul, sem excepção. E é curioso que, no fim-de-semana passado, em que me
confrontei com o melhor mas também o pior da vida rural, tenha sido divulgado
um estudo que nos deve deixar a todos preocupados. Daqui a 30 anos, as Beiras e Trás os Montes podem
perder mais de 150 mil habitantes. E se as políticas demográficas não forem
alteradas, o interior norte pode perder até quase meio milhão de habitantes, em
2100. Esta é uma das conclusões do projecto DEMOSPIN, elaborado pelas
universidades da Beira Interior, Aveiro e Coimbra e pelos institutos
politécnicos de Castelo Branco e Leiria. Foi apresentado no sábado passado no
Fundão e na Covilhã, regiões que conheço bem, territórios que, ali mesmo às
portas da serra, demonstram que ou fazemos algo por estas gentes ou não haverá no
futuro um país viável. A sustentabilidade da nossa economia só será uma
realidade se os nossos governantes olharem com inteligência para fora das áreas
metropolitanas, onde, mal ou bem, o desenvolvimento existe. Não há Portugal sem
todos, não há país se continuarmos a deixar morrer o melhor que nos deixaram
como herança. É nosso dever manter o legado e preservá-lo o melhor que
soubermos.
*Crónica Semanal na Rádio Antena
Livre, 89.7, Abrantes, de 28 de Outubro.
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