Momento «Em nome de ti, ALA», dia 158.
- Agora sei como se faz um livro
e, ao tentar recomeçar, nem uma palavra. Conseguia compor as crónicas da Visão, a tropeçar em cada linha, mas, assim que puxava o bloco do livro, tudo me desaparecia da cabeça e da mão. Pensava
- Sequei
em certo sentido alegrava-me que tivesse acabado bem, pensava
- Se calhar pus tudo neste último texto e acabou-se
mas o facto de não me sair nem uma letra começava a dar cabo de mim. Para quem, desde que se conhece, joga a sua vida neste tabuleiro e sempre cortou todos os pescoços que se interpunham entre si e o seu trabalho, sem culpabilidade nem hesitações, era uma situação muito complicada. Todas as manhãs me sentava disciplinadamente à mesa, todas as noites me levantava dela com a página em branco. Não há aqui o menor exagero: com a página literalmente em branco. De longe em longe conseguia umas frases, animava-me
- Se calhar encontrei
e não encontrava fosse o que fosse: as minhas pobres tentativas acabavam no lixo. Nunca me ralei com aquilo que os outros pensam do que ponho no papel, a certeza da importância do que produzo é inabalável, disse exactamente o que queria dizer e como queria dizer, chegando ao que pretendo após múltiplas versões. Não redijo com facilidade, é-me muito penoso alcançar o que tenho de alcançar para me sentir em paz, mas jamais me sucedera não lograr uma linha que fosse, um esboço de texto sem possibilidades internas, um oco de banalidades, uma ausência de alma. Imaginava
- Vou escrever crónicas só, não dou para mais nada
embora a minha atitude, em relação às crónicas, se haja alterado. Parece-me poder utilizá-las como laboratório ou itinerário paralelo, colocar nelas o que os livros rejeitam, exercitar a mão. Estou muito grato à Visão pelo espaço que me dá e pela delicadeza e elegância com que sempre me tratou e sinto-me, também, a pagar uma dívida de reconhecimento. Enquanto me quiserem ter-me-ão com eles. A não ser, claro, que a capacidade de construir crónicas desapareça, conforme desapareceu, durante meses, a capacidade de construir livros, o que é menos provável dado que as crónicas se movem à superfície das coisas e os livros são peixes de águas profundas, às quais não possuo um acesso consciente: numa crónica eu sei o que vou escrever. Num livro escrevo, cada vez mais, o que o próprio livro me dita ou, expresso de outra maneira, nas crónicas falo e nos livros escuto. Por isso cada vez mais se me afigura que um livro é precário, depende de factores não relacionados com a minha vontade consciente, regidos por princípios e leis a que não tenho acesso. Para criar torna-se necessário que estejamos, ao mesmo tempo, por fora e por dentro do texto, como acontece com os bons leitores, infelizmente tão raros. Eu pasmo com as senhoras e os senhores que alinham resenhas críticas nos jornais, pasmo com a sua petulância e a sua patetice e, sobretudo, com o profundo desconhecimento da coisa literária, expresso em afirmações absurdas. Mas nada disso me parece significativo diante do mistério da arte, que requer humildade, atenção e amor. O que é importante para mim é que eu escreva, porque, se for capaz de escrever, tenho sempre razão.
Portanto, voltando ao princípio, aguentei cerca de seis meses horríveis, na certeza de haver perdido a capacidade de escutar vozes secretas e não me sobrar fosse o que fosse. Os meus amigos continuavam a viver e eu parado. Um dia, a meio de dezembro, comecei a desenhar uma casa e percebi que era o início do livro. Uma casa com telhado, chaminé, uma antena de televisão. Era o início do livro mas ainda não era o livro. Desenhei mais quatro ou cinco casas, com inquilinos de um lado e do outro, até ao quarto andar. A seguir entendi que lhe faltava o sótão e desenhei o sótão. Depois, a pouco e pouco, os diversos apartamentos foram sendo habitados. Depois, a pouco e pouco, os habitantes principiaram a mudar. Depois apareceu uma frase, Caminho como uma casa em chamas, e dei-me conta de ser o título, mas continuava a não acreditar muito naquilo. Depois ensaiei o primeiro borrão do primeiro capítulo, cheio de medo e dúvidas: lixo. Um segundo borrão: lixo. Um terceiro: lixo. Depois recuperei o terceiro borrão do lixo e comecei a refazê-lo, uma, duas, três vezes, a perguntar-me
- Será isto?
a responder-me
- Não deve ser isto mas vou continuar
sem que a qualidade do texto me interessasse: a única coisa que me interessava era se haveria ali a espessura que queria. O capítulo número dois passou pelos mesmos tratos de polé e, a meio de uma correção pareceu-me que a obra tinha, finalmente, chegado. Fiz o primeiro borrão do capítulo número três e acabei, há horas, o primeiro borrão do capítulo número quatro. E vou continuar até ao fim com um borrão apenas, para refundir tudo a seguir, caminhando como uma casa em chamas num nevoeiro ardente de palavras. É capaz de ser o livro, meu Deus, daqui a sei lá quantos meses saberei se é o livro, saberei se sequei ou ainda tenho vida em mim. Até essa altura a incerteza, o cagaço. Esta crónica não deve ser muito interessante para o leitor, trata-se do mero relato de um homem às aranhas com o seu trabalho. Achei que tinha obrigação de o partilhar com vocês: afinal de contas são os meus cúmplices e têm o direito de saber o que se passa na oficina, como dizia o Zé Cardoso.
- É preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer
insistia ele
- É preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer
e, como em muitas outras coisas, é capaz de estar certo, o sacana. Aqui entre nós faz-me uma falta do caneco. Tenho saudades tuas que me farto, meu malandro».
23.02.2012
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