Moçambique. «Eu tenho sida». Que bom seria não ser assim.

Doze anos depois de eu lá ter estado, choca-me que Moçambique continue a ser um dos países com o maior número de pessoas portadoras com o VIH/Sida. Os dados foram hoje conhecidos no relatório do Programa Conjunto da ONU para o VIH/Sida (ONUSIDA). Dirão os mais pessimistas: «mas qual o espanto»? Seria uma pergunta legítima mas eu, que em 2002 estive no país, vi, com uns inexperientes 20 anos de idade, os efeitos mais dolorosos de uma doença como esta. De norte a sul do país havia sensibilização para a doença, havia programas de saúde em marcha que tinham efeito. Repito. Estamos a falar de 2002. As pessoas, sobretudo os jovens (a faixa etária mais infectada) estavam muito à frente do seu tempo, em matéria de mentalidade e avanço civilizacional. Foi em Moçambique que, pela primeira vez, vi pessoas, de todas as cores, classes sociais e origens, na rua, envergando camisolas, t-shirts, onde se lia “Eu tenho sida”. E faziam-no de sorriso no rosto, conscientes da epidemia, muitos deles sabendo que iriam morrer, outros com esperança, e outros ainda convencidos de que o assumir da doença em público podia fazer a diferença. Era, simplesmente, um grito de alerta para os que estavam imunes à doença, uma espécie de prevenção para não propagar o vírus. Mais de dez anos depois, é duro perceber que essa campanha nacional e essa energia colectiva, a que assisti em 2002, caiu por terra. Uma oportunidade deveras perdida. Não sei a razão do retrocesso. Sei apenas que num país muito mais atrasado do que hoje, vi um avanço civilizacional que actualmente não existe em muitos países civilizados e industrializados. Vi crianças portadoras do vírus, muitas delas órfãs, que faziam da rua a sua casa, e a quem a mensagem fazia eco. Percebo hoje (como percebi há muito, pelos dados que nos chegam), que essa campanha, esse sentimento colectivo, se perdeu algures nas pontas da sociedade moçambicana. Certamente que a classe política, a elite e aqueles a quem depositaram o futuro do país se esqueceram desta gente, gente que faz o bolo de milhões, e a quem o vírus não deu tréguas. Um dia, acredito que Moçambique em particular, pode voltar a dar o exemplo, pode, de facto, ajudar a mudar a direcção da doença. Uma doença demasiado pesada para ser carregada. Seja em África ou em qualquer outro ponto do mundo. Tenho esperança. E carrego-a com as memórias dos meninos de rua de Maputo, com os sorrisos dos jovens que conheci há 12 anos nas ruas da capital moçambicana, bem como com aquelas camisolas que mais não eram que um grito de alerta público. Essa experiência que a Vida me deu aos 20 anos de idade, a mim, uma jovem que vinha da Europa, da antiga metrópole, a quem a vida sorria, que tinha tido a sorte de ter nascido numa família que tudo fazia para que nada do que era essencial me faltasse, mudar-me-ia para sempre. Eu, que sempre soube o significado da palavra dificuldade, que os meus pais nunca me esconderam, que sabia que não havia dinheiro para luxos (nunca houve) em Portugal, que teria de lutar por mim própria apenas com o apoio deles, que tinha um curso para tirar e que cada pinga de suor tinha apenas de escorrer uma vez, percebi que era uma afortunada ante aqueles meninos e meninas com o destino quase traçado. Naquelas ruas e avenidas largas de Maputo, onde o meu pai serviu o Estado Novo de Salazar de arma em punho anos antes, e longe do berço, soube que a minha vida havia de mudar para sempre. Percebi que a minha vida e a pessoa que hoje sou teve um ponto de molde naquela terra. E hoje, aquelas imagens e testemunhos que me dilaceraram na altura, magoam-me ainda mais. Porque passados 12 anos a arma da SIDA continua a ser mais poderosa que os ecos das balas da guerra, que o som da pobreza extrema. Duro não é viver na rua, descalço, aos quatro anos de idade, como vi. Duro é saber que a Vida pode ser tão mais longa e nós não a vamos cumprir. Tenho esperança*

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