Também eu «tenho a alma numa latrina», Eça.
Na semana passada fui ver «Os Maias», a nova adaptação
da obra maior de Eça de Queirós, para o cinema. O realizador João Botelho tinha
tarefa difícil, para não dizer impossível, já que sem poder dar mais-valias ao
argumento, bastava-lhe apenas colocar no écran aquele Portugal tão decadente do
século XIX. Razões para que a película fosse um sucesso não faltavam, já que a
riqueza literária que Eça tão bem conseguiu da Lisboa do novo-riquismo, dos boatos,
das traições e do amor incestuoso, estão lá e para sempre lá ficarão. Percebe-se
facilmente a intenção de Botelho ao mostrar a Lisboa da nobreza pretensiosa que
vive à margem do que a rodeia. Uma realidade tão similar à do século XXI, numa
metáfora cinematograficamente traduzida pela passagem do preto e branco para a
cor.
Esta é, acima de tudo, uma Lisboa cheia de imagens de plástico. Como o são
os cenários do filme, representados através de pinturas a óleo. E é
precisamente neste ponto que me detenho. Bem sei que o orçamento de um milhão e
meio de euros, entre apoios públicos e o mecenato do Montepio, não chegava para
igualar a obra literária. E também sei que neste país verbas para a Cultura
nunca foi uma prioridade. Mas colocar na tela uma obra como esta e tendo à
disposição o Douro, a Lisboa da actualidade que ainda consagra marcas do final
do século XIX, pareceu-me a mim que os cenários de ambiente em modo de pintura
se tornou pequeno demais para uma obra como «Os Maias». A ideia de colar as pinturas ao real não resulta e
enfraquece a monstruosidade do livro. Vale
pela linguagem literária que Botelho respeitou, mantendo-se fiel à prosa
queirosiana. Sobretudo pelo contexto de época, pela escrita de Eça, pela tal
opção de encenação, que, em vez de fazer uma excelente caracterização da Lisboa
do século XIX, optou por algo mais minimalista. Mas se este filme vale por algo, esse algo chama-se
João da Ega, o grande amigo do incestuoso Carlos da Maia. Ega, o boémio, o
intelectual, o bon vivant. E apesar de bem
retratados os Dâmasos, as Silveirinhas, os condes-ministros Gouvarinhos ou os
banqueiros da época na clara alusão à elite decadente do século XIX, João da
Ega supera todos. Esta é a grande
mais-valia de João Botelho neste filme. Pegou na personagem e colocou-a a
conduzir a história deste amor maldito que havia de terminar em tragédia
familiar. Ega é a lupa de
Botelho num filme em que não se escreve uma única sílaba de argumento,
limitando-se a cortar e a colar. E o actor, que encarna a personagem de João da
Ega, mostra como «Os Maias» são uma obra intemporal, de palavras sábias que
nunca estão em demasia. O filme que tem atraído
milhares de portugueses às salas de cinema vale por aquilo que encarna. Sei que
em 2015 o projecto vai percorrer as escolas, onde a obra tem lugar cativo. Que
ajude a colocar mais jovens a lê-lo e a não se ficarem pelos resumos que há
muito por aí se vendem. A história da família mais
famosa (e disfuncional) do país continua, mais de cem depois, a fazer correr
tinta e a provar o óbvio: que este é um clássico que nunca se ultrapassa. E com
todas aquelas frases que já fazem parte das nossas vidas e com as quais terminamos
esta crónica. «Tenho a alma numa latrina». «Preciso de um banho por dentro»
neste «chiqueiro que é Portugal». É toda esta decadência da época que nos
compara com os dias de hoje. E ao mesmo tempo parece-nos tão desprovido de tudo
e de nada, tal como o amor de Carlos da Maia por Maria Eduarda.
*Crónica de 13 de Outubro,
Antena Livre, 89.7, Abrantes. OUVIR.
Comentários
"O filme cria mesmo um artefacto, teatral ou operático, para destacar a palavra. Os painéis de João de Queirós da cidade de Lisboa, mas também de Santa Olávia e de Sintra, são um fabuloso detalhe artístico, que confere a todo o filme um ambiente onírico. Além disso, coloca-nos perante um palco, o que permite uma certa teatralidade e nos transporta mais facilmente para a época. Marcando também o plano literário com a narração possante de Jorge Vaz de Carvalho, Os Maias, de João Botelho, é cinema, teatro, ópera, política e literatura. Está lá tudo."
Manuel Halpern, in JL nº 1146, de 3 a 16 de setembro de 2014, p. 9