Louriceira: um símbolo de resistência no mundo rural português


Hoje quero falar-vos do que sou, propondo-vos uma viagem ao que de mais profundo há neste Portugal rural, numa viagem que começa em Abrantes e termina na pequena povoação de Louriceira, uma aldeia esquecida no concelho de Mação, na fronteira entre o norte ribatejano e o sul da Beira Baixa.
A pequena estrada, íngreme, que começa no alto dos vales, continua igual há 30 anos: estreita, mal passa um automóvel. O desenvolvimento, na pequena aldeia da minha infância, que conta hoje com pouco mais de 10 habitantes, teima em não chegar. 
A escola primária há muito que fechou as portas, caindo na degradação. Facto natural numa localidade onde as crianças não nascem. Os jovens são poucos e os velhos são uma imagem da resistência. 
Chego na tarde de Natal. O sol passeia-se por ali, entre vales e montes, a chamar por mim. A viagem rumo à Louriceira é feita de olhares atentos. Numa paisagem de montes e vales, deixo a estrada principal que vem desde Abrantes. 
À medida que desço o Vale, avistam-se, aqui e ali, lá bem no alto, moinhos de vento, alguns abandonados, outros ainda utilizados pela população. Há hortas nas encostas que há anos não vêem uma enxada. Uma paragem à beira da pequena estrada traz-me apenas o silêncio, entrecortado pelo coaxar dos sapos que vagueiam pelo riacho. Este corre no vale em direção à ribeira que embeleza o povoado. 
No centro da aldeia da Louriceira espera-me uma tradição de finais de Dezembro, pese embora já serem poucos os que restam para a manter viva: o grande tronco de Natal que arde até ao dia seguinte. 
O ambiente, esse, já não é o mesmo. Deixou de haver grandes multidões em torno da fogueira de Natal, já que a Emigração há mais de 20 anos levou gente para paragens mais longínquas. 
Prossigo a viagem. Os caminhos para chegar ao cimo da aldeia são tortuosos. Bem contornados chega-se lá, ainda que com a respiração ofegante e paragens pelo meio. 
Janta-se cedo por estas paragens, seja noite de Natal ou em todas as restantes noites do ano. O bacalhau coze nas brasas das lareiras. O peixe fumegante é figura imperativa nas terras do Interior nestes frios invernos. 
Às dez da noite o sono já bate à porta. Aqui deita-se cedo e cedo se levanta. A fogueira comunitária continua a arder, ainda que sem a chama humana de outros tempos. Das chaminés, o fumo denuncia que o serão acabou. À meia-noite poucos são os que ainda mantêm a chama acesa. Os candeeiros das ruelas emanam uma luz fraca, e vaguear por aqui em noite cerrada é uma verdadeira aventura. 
Horas depois, Louriceira acorda vagarosamente num regresso que já se antecipa. O cepo da noite anterior ainda arde. Pouco, que a noite foi longa e o Natal está a terminar. 
A fogueira apaga-se aos poucos. Subo de novo o vale que me há-de levar à cidade. Para trás, a imagem continua igual, a de uma aldeia que resiste através daqueles que nunca sairão. Até que a morte chegue. 
Esta é a aldeia da minha infância. Esta é a imagem do Portugal profundo que morre lentamente mas que desejo sempre que nunca se acabe.

Crónica de 26 de dezembro de 2016 na Antena Livre, 89.7 Abrantes. OUVIR

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