Pensamento Livre: porque tem tudo a ver



Até que ponto abdicamos da opinião e permitimos que nos apresentem determinações? 

Texto: João Barbosa 
Jornalista e escritor sobre Vinhos

Para consolo do corno, entra-se em negação ou se desvaloriza. A lei – ditada pelo pai, amigo ou professor – é para se cumprir. Para os sortudos, os que têm tempo, pode realizar-se um golpe de Estado. 

Exemplifico: uma professora de Educação Visual ordenou-me que sublimasse Renoir e apavorasse Vasarely. Durante décadas foi lei! Um dia olhei e mandei a opinião setôra para fora da vida. Como nos Alcoólicos Anónimos, encarei a verdade e assumi que Renoir é piroso e Vasarely é eterno.

Cada um pense e diga o que entender! Os sensíveis sofrem da certeza-mentira. Vou finalmente o vinho e às palavras deixadas no texto anterior. Segue pela ordem:

– Ler o poema dedicado a Luís Figo comprova que Manuel Alegre não é poeta, apenas escreveu poemas. Não chega a ser mau. Então e a militância política e os seus hinos? Desde quando é que um panfleto é arte?... Pode sê-lo, mas não o é só porque existe. Todavia, com tantos a elogiarem-no, algum talento tem de ter. Como não dito leis e me curvo perante a multidão, cito Agustina Bessa-Luís: Manuel Alegre é o nosso maior poeta assim-assim. Ou seja, bola ao centro e chuta para canto.

– O Mateus Rosé é dos vinhos mais vendidos do mundo. Pode um bando enorme enganar-se? Pode!

Contudo, este rosado não é o menino da lágrima, de Giovanni Bragolin – um meta-Renoir. Claro que sei que fica bem bater nos grandes. Assim, desdenhar do Mateus Rosé é um preconceito. Depois da praia ou em convívio pueril com amigos, o Mateus Rosé é uma companhia deliciosa. Quando o sirvo, às cegas, os abominantes deliciam-se.



– Muita gente ouviu falar nos vinhos de Colares – o mais citado na obra de Eça de Queiroz. É-lhe atribuída a sentença: este vinho ou está estragado ou é Colares novo. Quem o tragou acabado de fazer ou jovem percebe a afirmação… cheira e sabe a vomitado de alho! Não sei o que levou alguém a guardar um vinho pavoroso. 

Todavia, por alguma razão, certamente mística, sobreviveu e ao ser tragado revelou uma luz ímpar. Com mais de dez anos, é sublime. Tem carácter. É único. Tem a frescura da brisa marinha, o exotismo da salinidade e as nuances de maçã reineta, cujas árvores rasteiras partilham o espaço com as videiras.

Ah! Mas os vinhos de Colares são difíceis! Mesmo com idade de prontidão, dificilmente agradam a 10% do público em geral – exagero por defeito. Acresce que são vinhos fora de moda e que improvavelmente poderão alinhar.

Contudo, difícil, diferente e fora de moda não significam mau nem bom. E por que é sublime? Pela mesma razão que, em determinada fase, se lê Margarida Rebelo Pinto e, noutro tempo, António Lobo Antunes.

Isso é lei? É, para quem a quiser acatar – por qualquer razão.

– Adriano Moreira é o vinho de Colares da política. É denso, complexo e sábio. Pode divergir-se e até odiar, mas ninguém com tino pode dizer que é ignorante e não tem verticalidade.


– Azul é o oposto da trovoada. Por isso é maravilhoso. É muito fácil.

– Trovoada é o oposto do azul. Por isso é maravilhosa. Para muitos, é fácil.

Com estes tópicos tentei definir o «mau popular», o «bom incompreendido», o «complicado para intelectuais», o «sábio admirado» e os «inquestionáveis adorados e apupados» – há quem aprecie porque é óbvio e quem odeie porque é do contra.

Conforme não bebo Mateus Rosé com feijoada – só porque a ligação não resulta – não abro uma garrafa de Colares quando chego da praia nem leio Adriano Moreira na sala de espera do dentista.
Porquê aplicar a estética ao vinho. Porque a consideração assenta nos sentidos – aqui olfacto, paladar e tacto.

Porquê comparar a arte? Porque impressiona, cria divergências, faz pensar – como o poder do local, da climatologia e da tecnologia, etc.

O vinho pode dar prazer como um livro. Contudo, nem todos têm de gostar de vinho. Tal como há quem não goste de ler.

Quem afirmar que vinho não pode ser arte ou, no mínimo, um objecto estético, não percebeu que a comida é o prazer mais antigo da humanidade, mais do que nos permitir a vida. Não é o vinho só por si ou a génese, claro.

A gastronomia – onde se integra o vinho – une toda a humanidade. As culturas encontram-se à mesa. Nela celebramos -mos o nascimento, convidamos alguém para se nos juntar na vida, fechamos negócios, assentamos princípios diplomáticos.

Como um poema de Manuel Alegre ou como um quadro de Vasarely.

Agradecimento: Este é o segundo texto de João Barbosa no Pensamento Livre. Para que não se perca o sentido da prosa magnífica do João, prometemos, desde já, um terceiro na próxima semana. 

Leia o primeiro texto do João no Platonismo aqui

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