Pensamento Livre: ai o amor e o vinho entornado



Texto: João Barbosa 
Jornalista e escritor sobre Vinhos*

Lembram-se da discussão entre Alice, a aprendiz de alfaiate, e Vasco Leitão, o estudante de Medicina, na Canção de Lisboa? Não me vou enganar nas citações, porque as anotei.

A Alice apanha-o a namoriscar – «Riqueza da sua avó, tão pequenina» – uma vizinha e diz-lhe:

– Está convencido que é conquistador, Don Juan da Moita.

Ele nega – se for mentira que lhe cortem a cabeça, e cai a janela-de-guilhotina. Acusa-a de ter namorado uma data de rapazes, o último foi o 16º – o Luís, 16 – e volta a guilhotina a bater-lhe no cachaço.

Como diz a Teresa Guilherme:

– Mas isso agora não interessa nada!

O que importa é o Don Juan da Moita. Quem diz Juan, diz Doña Juana da Moita. O álcool é um desinibidor- Um copo de vinho é muito mais interessante do que um copo de vodka com laranja.

Há vinhos para todas as ocasiões. Por incrível que pareça, há quem não goste de vinho. Mas essa gente faz amor com peúgas calçadas e dobra o pijaminha quando se levanta.

Tive uma namorada que detestava vinho e jazz. Tentei convencê-la que eram duas preciosidades humanas. Evangelizei-a e tornou-se versada na nobre bebida. Em contrapartida, deixei de apreciar jazz. Ela ficou a ganhar.

Voltando ao Don Juan da Moita… Quando a companhia é óptima, os olhares fazem as pernas tropeçar umas nas outras, os lábios movem-se comicamente e qualquer zurrapa vínica parece um néctar refinadíssimo.

Todavia, o casal zangado e de trombas consegue merdificar qualquer especialidade, reduzindo-a a pinga. Tantas vezes terá sido lançada, qual azeite fervente despejado pelos defensores do castelo sobre os inimigos, à cara de quem ousou disparatar para além do aceitável ou da resistência dos nervos.




Quando era miúdo, era magro e bonito – um pão – e fiz muitas asneiras. Armei-me em Don Juan da Moita e levei muitos estalos – bem dados, reconheço. Nem com o vinho melhor que a algibeira permitia…

Foi há muito tempo – mais do que gostaria – e tinha a mania que percebia do assunto, mas hoje coro de vergonha e interrogo-me se os encontros mal sucedidos não se deveram à escolha errada do vinho.

(Suspiro)

Claro que quando levava um par de patins me tornei no maior totó da cidade, esmagado pela derrota, narcisicamente ferido e envergonhado até diante das pedras da calçada.

Quero com isto dizer que o vinho é o seu momento, tal como o homem tem de ser julgado pelo seu contexto e circunstância.

Para mim – quem quiser que desminta – o bom vinho é aquele que nos sabe bem. Um tinto poderoso cai mal depois da praia e um branco suave não combina com o bacalhau cozido da consoada. Não faço juízos, seja feliz, é isso o importante.

O vinho não é só a música para acompanhar a canção do bandido. Conto uma situação. Há muitos anos faleceu um grande amigo, apreciador de vinhos do Douro. Agarrei nos filhos e filhos e abri uma garrafa de Barca Velha de 1982.

Bebemo-lo espiritualmente com ele. Desde então, esse vinho não tem rótulo, é a amizade do Mário. Não há colheita de Barca Velha que não me lembre dele e vai sempre um brinde. Já eles nunca se esqueceram dos seus aromas, sabores e toque. Para quem não saibe, inventamos memórias e isso não tem qualquer importância. É o coração a falar.

Tal como essa namorada, muito distante no tempo, que a convenci com um Pasmados. Não me lembro do ano – nem me interessa – mas… se me calha… por breves instantes sou naquele sítio-tempo. Não demora um relâmpago, e basta.

Brindemos ao amor – seja ele qual for – à amizade e ao sucesso. A vida não é curta para maus vinhos, mas para não gozar o momento, na alegria ou num abraço sentido quando nos chega a tristeza.

Agradecimento: O terceiro texto do João no Pensamento Livre é de uma extensão tenebrosa, só ao alcance de quem detém a capacidade ímpar da escrita. Estórias entrelaçadas que nos alcançam a alma, que nos reviram o coração, que nos fazem voar a um tempo que nos pertence, basta apenas que o queiramos.

Leia os textos anteriores do João no Platonismo aqui e aqui

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