Joker: a (des)construção do que somos num confronto perturbante e comovente
Há muitos anos que não saía de uma sala de cinema inquieta, emocionalmente
desorganizada, com o meu cérebro preso num limbo e difícil de me libertar.
Talvez isso diga tudo – ou nada – das produções de Hollywood nos
últimos anos. Ou quem sabe, isso também diga muito de mim. A última vez que um
filme me marcou foi com o “Roma”, ainda assim, nada comparável ao que este
Joker me deu.
Falemos então do propósito deste post: “Joker” 2019. A crítica, a
imprensa, os jornalistas e até mesmo as “vozes” de Holywood são, quase todas,
unânimes. As opiniões à minha volta eram semelhantes. Eu, que nunca fui fã de
filmes de “super-heróis”, estava um pouco reticente, mas, ao mesmo tempo,
curiosa, até porque tinha visto uma mão cheia de vezes o trailer em que a
interpretação de Joaquin Phoenix me deixou, de facto, curiosa. A começar pela brutal perda
de peso do ator, que traz, sem dúvida, uma carga muito peculiar e marcante ao filme e à personagem.
Se me perguntarem qual a palavra com que defino o filme, mesmo horas
depois, continuo no mesmo patamar: desconcertante. E não sei o que me desconexa
a ligação entre o cérebro e o corpo. Talvez seja mesmo a interpretação da
personagem. A forma bela e perfeita como Phoenix encarna o papel de um vilão que aqui e agora é apenas e só o homem e o seu passado.
Só que desta vez conseguiram pôr-me a gostar mais de Joker do que de Batman,
e isto é…mágico.
A violência, física e mental,
com que nos percorre a mente. E depois, bem, depois, a espada que se crava em
cada cena, em que somos confrontados com a dura realidade em que parte da
sociedade vive e sobrevive na sua luta interna diária contra os fantasmas de
preconceito.
A questão da doença mental é, para mim, o pilar desta história que
coloca no centro um “super-herói” que é essencial compreender. O bonzinho do
Batman e a bondade do seu querido pai assassinado é um fio leve ante todo o
contexto (real) e ilusório de Joker, sobretudo à medida que nos 122 minutos nos
vão desenrolando a história por detrás do vilão, desde a infância, a adoção até
à idade adulta e à criação da sua dura e difícil personalidade.
A história do
homem é pois aqui o fio principal, sobretudo para compreender como ele se
transformou num vilão maquiavélico. Só me consigo lembrar da frase histórica de
Jean-Jacques Rousseau: «o homem é bom por natureza. Torna-se mau porque é a sociedade que
o corrompe».
Joker não é apenas um filme, é um grito do que somos, do que nos rodeia, do que nos chama e nós não ouvimos
Chegamos a um ponto neste filme em que somos todos Jokers, em que a
maldade e o vilão se transformam em algo com que nos identificamos, em que a
dor e a bondade de Joker nos transportam para o lugar onde vivemos, para as
nossas vidas, numa teia de dormências que se misturam com a fantasia da banda
desenhada e a triste realidade da incompreensão social. A solidão, a depressão,
a angústia, a infelicidade, a revolta o medo. E não temos nós tudo isto neste mundo que
nos rodeia? Temos. E é assustador perceber que passamos por tantos Jokers diariamente e não
temos a capacidade de os ver, como eles merecem ser vistos. Como eles gritam e pedem para ser compreendidos.
Joker, de Todd Phillips, dá-nos muito mais do que estamos à
espera. Coloca-nos numa espécie de transe na louca, decadente e, ao mesmo tempo,
sedutora Gotham City, e em que tudo se torna muito difícil e ao mesmo tempo tão
fácil de desconstruir. Mesmo depois de sairmos do cinema. Deixa-nos realmente a
pensar no que nos rodeia. E tudo isso através de uma personagem histórica do
mundo de super-heróis que é desconstruída, e construída, para que possamos compreender que todos de facto nascemos bons, e somos, pois, corrompidos pela nossa própria história.
Já venceu o “Leão
de Ouro”, em Veneza, e quase todos lhe antecipam um Óscar. Provavelmente tê-lo-á,
porque só um cego ou uma má intenção, pode encontrar uma crítica negativa sobre
a forma intrigante como “Joker” nos envolve.
Era disto
que eu tinha saudades quando entro numa sala de cinema. Há anos que não me
sentia assim, envolvida, do princípio ao fim, numa história, numa personagem, no
mundo em que vivo. E da forma mais extrema: rápida, violenta, clara e, ao mesmo
tempo, perturbadora. Joker não é apenas um filme, é um grito do que somos, do que nos rodeia, do que nos chama e nós não ouvimos.
É, sem
dúvida, o melhor filme que vi nos últimos anos. E Joaquin Phoenix é o principal
responsável por isso. Por mais que tente, não consigo encaixar ator melhor para
isto.
E “isto” é
mais do que bom. É simplesmente genial! Se não viram, não percam! Mas preparem-se
para uma reviravolta, sobretudo nos vossos corações.
Comentários