A fome (silenciosa) na casa dos portugueses


É um facto inegável que esta pandemia Covid-19 e a crise sanitária que assolou o Mundo trouxe, consigo, uma profunda crise social.

O fosso entre ricos e pobres adensa-se. De hora a hora. O silêncio, a vergonha e o desespero lavram nas franjas mais frágeis das sociedades. A portuguesa não é exceção e é, no contexto europeu, uma das que mais vai sofrer.

E esta semana veio à tona, na Amadora, na sequência de uma iniciativa da Mesquita local - pensada de forma sincera mas muito atabalhoada. 

As imagens que todos nós vimos é só a ponta do icebergue. Já não são apenas os mais pobres que estão a cair numa outra miséria maior. São também pessoas da classe média e inclusivamente, da classe média-alta (com particular destaque para os profissionais liberais). 

O Banco Alimentar e múltiplas instituições sociais têm gritado ao país que a situação é grave, em muitos casos, mais ainda do que a última crise económica provocada pela Troika.

É claro e sabido que o Estado, infelizmente, não vai conseguir ajudar todos. É certo como a água que a criminalidade, a violência doméstica e outros crimes de vária ordem e origem vão aumentar. 

Hoje chegou-me mais um exemplo, em Lisboa, de uma emergência social gritante. É este caso - que representa todo um país - que relatamos no Platonismo pela voz das suas testemunhas. 

O coronavírus trouxe novas prioridades no apoio às populações mais vulneráveis

Vazia e silenciosa. É assim que Mário Rui dos Santos Baudouin, diretor de programas da ONG Ajuda em Ação, encontrou a Escola E.B. 2,3 Mário de Sá Carneiro, em Camarate, desde que a pandemia da Covid-19 obrigou ao seu encerramento. “O som dos pássaros, embora bonito, não é o som normal de uma escola. O som normal é o das crianças a brincar à apanhada e do toque da campainha a chamar para as aulas”, garante.

Perante esta nova realidade, mudou também o apoio que a ONG presta às populações mais vulneráveis desta freguesia do concelho de Loures, em conjunto com vários parceiros locais. 
Se antes da pandemia a Ajuda em Ação estava concentrada no desenvolvimento de um plano educativo para crianças e jovens e de empreendedorismo para as mulheres de Camarate, os pedidos de ajuda das famílias em termos de aquisição de bens essenciais fizeram-se ouvir mais alto e foi preciso agir para garantir algo essencial: a alimentação das famílias que já sofrem na pele as consequências económicas da pandemia.

"Já há fome” entre as famílias de Camarate

Com a chegada da Covid-19 a Portugal e as consequentes medidas para combater a sua propagação, o país registou a segunda maior subida da taxa de desemprego da Europa, no mês de março. 

Os efeitos económicos da pandemia sentem-se já nas famílias portuguesas e são as populações mais vulneráveis que se veem mais afetadas nestes momentos.

Mário Rui Baudouin, diretor de programas da Ajuda em Ação, Mário, animador, e Vasco Martins, Vice-Presidente da Associação de Pais mais à direita, durante a primeira fase de entrega dos cartões de apoio alimentar às famílias.


Até agora, a Ajuda em Ação, em conjunto com o Agrupamento de Escolas de Camarate D. Nuno Álvares Pereira, a Associação de Pais (APDNAP) e a Junta de Freguesia de Camarate, Unhos e Apelação já identificou pelo menos 32 famílias de Camarate em situação de grande dificuldade. “Aquelas que nos têm levantado mais preocupações são as famílias que estão sem documentos e, como tal, não podem recorrer aos serviços da segurança social, são famílias que tinham trabalhos precários, que perderam esses empregos e não têm direito a subsídio de desemprego ou a apoios como o lay-off.”, conta Aida Gonçalves, educadora social do Agrupamento de Escolas há já sete anos.

Aliás, algumas dessas famílias já não têm qualquer tipo de fonte de rendimento, não conseguindo fazer face a despesas fixas ou ter que chegue para a alimentação. “Temos famílias que não estão a conseguir pagar a renda de casa, que não estão a conseguir pagar a água, a luz e outras famílias que efetivamente estão numa situação em que já há fome dentro de suas casas”, acrescenta Aida.

Apoio chega na forma de cartões para compra de bens essenciais 

A Ajuda em Ação começou a receber as famílias carenciadas na Escola E.B. 2,3 Mário de Sá Carneiro, em Camarate, logo pela manhã do dia 30 de abril. Entre elas, Isabel e Nélson (nomes fictícios), um casal com três filhos e um neto a cargo, que ficaram desempregados devido à Covid-19. 

“Este apoio caiu do céu”, desabafa Isabel ao receber o cartão de 100€ que lhe vai permitir comprar bens essenciais para a família no supermercado local. “O que importa é chegar para as crianças porque nós passamos bem”, conclui.
“Temos famílias que não estão a conseguir pagar a renda de casa, que não estão a conseguir pagar a água, a luz e outras famílias que efetivamente estão numa situação em que já há fome dentro de suas casas”
Para a equipa responsável pela ação de emergência, o dia foi intenso, repleto de muitas emoções e, hora após hora, somavam-se histórias muito semelhantes a esta. A de alguém que chegou há 7 meses a Portugal para acompanhar a filha numa cirurgia que a pandemia fez adiar e que agora está em grandes dificuldades porque os apoios tardam em chegar... Ou o relato de uma outra mãe que nas últimas duas semanas tem tido dificuldades em comprar fraldas para o filho portador de deficiência.

Os pedidos de apoio alimentar dispararam devido à Covid-19 e depois de um processo rigoroso de levantamento de necessidades e sinalização dos agregados familiares mais carenciados, a Ajuda em Ação em conjunto com os parceiros locais avançou, para já, com a primeira fase de apoio a 32 famílias em resposta de emergência.  

Foi entregue a cada uma um cartão de apoio alimentar no valor mensal de 100 euros para a aquisição de bens alimentares e de higiene, a ser gasto num supermercado local. Segundo a ONG, a decisão de distribuir cartões de apoio alimentar passou por querer conferir às famílias responsabilidade, mas sobretudo dignidade: serão elas próprias a gerir o dinheiro, de acordo com as suas necessidades. A resposta de emergência não termina com a entrega dos cartões, estendendo-se ao acompanhamento de todo o processo e ao apoio psicossocial das famílias, ações que contam com a cooperação das entidades envolvidas, incansáveis nesta ajuda. 

Esta é a primeira fase da resposta de emergência, que deverá decorrer ao longo dos próximos três meses. Para conseguir garantir o sucesso desta ação de apoio a famílias que estão em situação vulnerável, a Ajuda em Ação tem a decorrer uma campanha de crowdfunding. “Queremos fazer mais e para isso precisamos da ajuda de todos”, refere Mário Rui, diretor de programas da ONG em Portugal.

Ajuda em Ação

A Ajuda em Ação é uma Organização Não Governamental (ONG) internacional de origem espanhola com presença em Portugal. Foi fundada em 1981 e atua em áreas como a pobreza, a desigualdade, a vulnerabilidade, a exclusão social e as alterações climáticas, com o objetivo de potenciar a dignidade e solidariedade para a construção de um mundo mais justo. Atualmente juntou à sua missão a luta contra a disseminação do novo coronavírus e a pobreza, um dos seus efeitos colaterais.

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