Em nome da vida, mesmo quando ela parte

No Platonismo, há mais de 20 anos que damos destaque à Política, mas não só. Abordamos temas dos mais variados setores da sociedade, em Portugal e no Mundo. Comentamos e falamos a atualidade, sempre com o foco no Humanismo e a partir de um olhar plural, agregador e humanista. Mas, acima de tudo, também partilhamos emoções, histórias e estórias de vida, que conhecemos e que vamos também, de algum modo, vivendo. Hoje, tenho um imenso orgulho de publicar um artigo do João Naia, jornalista, colega e amigo de longa data, mais de duas décadas. Este é o testemunho de um Homem que tem vivido, nos últimos anos, um drama familiar mas que, suportado na força que tem, a par da sua família, o tem superado de forma ímpar. E este texto é igualmente uma vénia aos profissionais de um SNS que, pese embora as suas fragilidades, continua a ser a luz ao fundo do túnel para muitos portugueses e também o seu conforto. 

Crédito da Foto: Wikipédia

Cuidar até ao fim: o "milagre" diário dos profissionais do Serviço Nacional de Saúde. 

Texto: João Naia 

Vivemos tempos de incerteza, de perdas anunciadas, de despedidas que se aproximam com a sua inevitabilidade implacável. A minha família está, neste momento, a atravessar um desses períodos. Uma das nossas - 88 anos de uma vida, vivida com dignidade e coragem - está internada no Serviço de Medicina II-B do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O seu quadro clínico é grave, irreversível. Tudo o que a ciência médica poderia fazer, foi feito com rigor, competência e humanidade. Agora, resta aquilo que é talvez o mais difícil e mais nobre: cuidar, aliviar, dignificar os últimos dias de vida. A minha familiar está a lutar com uma força de viver que impressiona, mas sabemos que o tempo se está a esgotar.

Neste momento tão delicado, a minha família encontrou um porto de abrigo: uma equipa médica e de enfermagem verdadeiramente extraordinária. É sobre eles que escrevo hoje, com o coração cheio de gratidão.

Falo de médicos, enfermeiras, auxiliares, administrativos. Pessoas. Seres humanos inteiros que, todos os dias, vestem a camisola do Serviço Nacional de Saúde. E que, todos os dias, fazem o impossível com o pouco que têm. Que enfrentam carências, turnos extenuantes, cansaço acumulado, frustrações constantes e uma crónica falta de reconhecimento por parte de quem tem a obrigação de os respeitar — os decisores políticos. Mas continuam. Persistem. Lutam. E fazem-no por amor. Por convicção. Porque acreditam que cuidar é um acto de serviço à vida e à dignidade humana.

No Serviço de Medicina II-B do Hospital de Santa Maria encontrei isso mesmo: profissionais de uma entrega comovente, que tratam os seus doentes como se fossem família. Que falam com ternura. Que explicam com paciência. Que ouvem, mesmo quando o tempo escasseia. Que confortam, mesmo quando o desfecho é inevitável.

Quero deixar um agradecimento profundo à Dr.ª Marisa, responsável pelo serviço, cuja liderança firme e sensível é acompanhada de uma notável clareza e frontalidade na comunicação com os familiares. Numa altura em que a incerteza pesa e a esperança se mistura com o medo, a sua forma transparente de nos informar, explicar e preparar, é uma prova de respeito, coragem e empatia.

E às enfermeiras Daniela e Diana, por quem tenho particular gratidão, por serem quem mais vezes contactei por coincidirem os seus turnos com as minhas visitas. Jovens, exaustas, mas sempre sorridentes e atentas, são exemplo de profissionalismo e compaixão. Mesmo com o desgaste de sucessivos turnos, continuam a ter tempo e palavras para cuidar dos doentes e também de nós, os familiares - que, de outra forma, estaríamos a viver este momento ainda mais perdidos e fragilizados.

É esta gente que ainda mantém vivo o SNS. São eles os verdadeiros pilares de uma das maiores conquistas da democracia portuguesa. Se o Serviço Nacional de Saúde ainda resiste, é graças a estas mulheres e homens que recusam emigrar, que continuam a acreditar num serviço público, universal, gratuito. Que, apesar do desprezo político e do desinvestimento crónico, continuam a servir o seu país, não com palavras, mas com actos.

É absolutamente inaceitável que se continue a empurrar o SNS para o colapso. Hoje, continuam a morrer pessoas nas urgências sem atendimento - grávidas, crianças, acidentados - por falta de meios humanos e logísticos. Tudo isto enquanto a responsável da tutela, a ministra da Saúde Ana Paula Martins, continua a repetir que “está tudo melhor”. Com a cumplicidade do Primeiro-Ministro. Não está nada melhor. É falso. É uma afronta à realidade e à dor de milhares de famílias portuguesas. Num país decente, onde responsáveis e responsabilidades não morrem solteiras, há muito que tinha sido demitida!

Deixo um exemplo pessoal, real e sintomático: recentemente, num momento complicado, durante a noite eu próprio liguei por duas vezes para o SNS 24. Esperei 43 minutos numa chamada, e 51 noutra. Em nenhuma delas fui atendido. Isto não é um detalhe. Isto é o espelho de um sistema em rutura.

Mas há ainda quem resista. Quem lute. Quem continue a acreditar. E é a esses - de modo particular a todos os que trabalham no Serviço de Medicina II-B do Hospital de Santa Maria - que deixo, em nome da minha família, um agradecimento eterno.

O fim da vida da nossa familiar aproxima-se. Mas sei que partirá em paz, cuidada com carinho, com conforto, com dignidade. Sei que tudo está a ser feito, até ao último instante. E isso é algo que não tem preço.

Obrigado por serem como são. Obrigado por não desistirem, mesmo quando tudo parece conspirar contra. A vossa existência honra a medicina, honra o país, honra a humanidade.

E um agradecimento especial à minha querida amiga e camarada jornalista Ana Clara, por me permitir ocupar este seu “Platonismo Político”, espaço de debate político — tão lido e tão relevante — com um tributo que é, acima de tudo, um apelo: que se olhe para estes profissionais com o respeito e a consideração que merecem. 

Que se salve o SNS. 

Enquanto ainda é tempo.

Nota - Platonismo: Muita força, querido João! Tenho acompanhado a viagem, e sei que todos vós, profissionais e família, têm sido uns heróis. Que o destino, de todos nós, seja e aconteça como tiver de ser. Até lá, acredita, tudo está a ser e foi feito, para lhe dar o melhor neste Planeta que, muitas vezes, não devolve aos melhores o que eles verdadeiramente merecem!

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