A «luta de classes» do Zé. Que também é a minha.
«Admiro o povo ao qual pertenço. Não o povo mitificado, admiro o
povo quotidiano. Gosto de ir a feiras. Gosto de comer frango assado com
as mãos. Devo tanto à cultura deste povo como devo a Dostoievski
Não contem comigo para defender o elitismo
cultural. Pelo contrário, contem comigo para rebentar cada detalhe do
seu preconceito.
A cultura é usada como símbolo de status por alguns, alfinete de
lapela, botão de punho. A raridade é condição indispensável desse
exibicionismo. Só pertencendo a poucos se pode ostentar como
diferenciadora. Essa coleção de símbolos é descrita com pronúncia mais
ou menos afetada e tem o objetivo de definir socialmente quem a enumera.
Para esses indivíduos raros, a cultura é caracterizada por aqueles
que a consomem. Assim, convém não haver misturas. Conheço melhor o mundo
da leitura, por isso, tomo-o como exemplo: se, no início da madrugada,
uma dessas mulheres que acorda cedo e faz limpeza em escritórios for
vista a ler um determinado livro nos transportes públicos, os snobs que
assistam a essa imagem são capazes de enjeitá-lo na hora. Começarão a
definir essa obra como "leitura de empregadas de limpeza" (com muita
probabilidade utilizarão um sinónimo mais depreciativo para
descrevê-las).
Este exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa
chegar a muita gente: música, cinema, televisão, etc. Aquilo que mais
surpreende é que estes "argumentos", esta forma de falar e de pensar
seja utilizada em meios supostamente culturais por indivíduos
supostamente cultos, e só em escassas ocasiões é denunciada como
discriminadora do ponto de vista sexual ou social.
Isso são livros de gaja, dizem eles. Às vezes, para cúmulo, há mesmo mulheres que dizem: isso são livros de gaja.
A raiz da minha cultura não pertence ao elitismo. Tenho orgulho das
minhas origens, do meu avô pastor, do meu pai carpinteiro, como outros
têm orgulho dos seus longos nomes compostos.
Depois de um trabalho que encerre convicções profundas, que tenha
em conta os princípios da sua área artística, que seja consciente da
história dessa área e que faça uma proposta coerente e inovadora,
acredito na divulgação o mais ampla possível.
Esconder uma obra em tiragens de 300 exemplares não lhe acrescenta
um grama de valor artístico. Quando essa falta de divulgação resulta de
uma escolha, pressupõe, quase sempre, falta de consideração pelo
público, a crença de que um público mais vasto seria incapaz de entender
tamanha sofisticação.
Acredito que a poesia pode ser publicada em caixinhas de fósforos,
escrita com trincha ou spray nas paredes, impressa em t-shirts, afixada
no facebook. Em qualquer um desses lugares, será diferente, mas em todos
continuará a ser poesia.
É ridícula a ideia de que a divulgação deturpa. A banalização é
sempre tarefa de quem banaliza e não do objeto banalizado. Quem não for
capaz de convocar os seus sentidos e a sua razão para apreciar uma
determinada obra, apenas por acreditar que se encontra muito difundida,
tem problemas graves ao nível do espírito crítico e da isenção mais
básica. Esse é um daqueles casos em que se aconselha a lavagem de olhos.
É aí que reside a deturpação.
Admiro o povo ao qual pertenço. Não o povo mitificado, admiro o
povo quotidiano. Gosto de ir a feiras. Gosto de comer frango assado com
as mãos. Devo tanto à cultura deste povo como devo a Dostoievski Há
alguns meses, a personagem de uma telenovela citou um poema escrito por
mim. Toda a gente da minha rua viu e ouviu. A minha mãe ficou orgulhosa e
eu também.
Chamo-me José ou, se preferirem, Zé. Desprezo o elitismo. O verbo não é exagerado, adequa-se bem ao que sinto.
Hei de sempre divulgar o meu trabalho na máxima dimensão das minhas
capacidades. Devo esse esforço à convicção que tenho naquilo que
escolhi dizer. Fico feliz se vejo os meus livros disponíveis em
supermercados, estações de correios, bombas de gasolina ou bibliotecas
públicas.
Aquilo que faço não existe sozinho, precisa de alguém que lhe dê
sentido, o seu próprio sentido e interpretação pessoal. Se uma árvore
cair sozinha na floresta, sem ninguém por perto, será que faz barulho?
Por esse motivo, o esforço de divulgação é também uma mostra de respeito
para com essas pessoas, é um sinal da minha crença nelas e no seu
valor. Exatamente como estas palavras, que existem porque estás a
lê-las.
Escrevo romances, a minha força de vontade é enorme. Tenho 38 anos,
conto estar por cá durante bastante tempo. Tenho ainda muito por fazer.
Habituem-se. Não tenho medo». José Luís Peixoto. Visão.
P.S. - Subscrevo palavra por palavra. Sinto-me tão feliz quando leio o Zé e sinto sempre que ele é o escritor da minha geração, que me entende, que expõe e desnuda tudo quanto eu sou e penso.
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