Aliança Atlântica comemora 60 anos


Os desafios da NATO na actual ordem mundial

Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, diz que «a NATO se encontra há duas décadas num estado de indecisão e latência». Luís Fraga, professor na Universidade Autónoma de Lisboa, realça que «a Aliança Atlântica é hoje uma “necessidade” para os EUA e para a Europa» e Carlos Gaspar, director do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova, garante que «é crucial que possa existir uma efectiva articulação estratégica e militar entre a NATO e a UE»


Foi há 60 anos que o Mundo viu nascer a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), no quadro da Guerra-fria e perante a necessidade de defesa territorial da Europa face à ameaça soviética.
Hoje, 60 anos depois, a Aliança Atlântica tem a sua principal missão no Afeganistão, e fora daquela que era a sua tradicional área de intervenção, e depara-se com um contexto de segurança internacional marcado por ameaças difusas, múltiplos e novos actores, muitos deles não estatais.
Mas, a verdade é que ao longo de quase seis décadas, a NATO tem resistido a sucessivas crises, internas e externas, que marcaram o período da Guerra-Fria e que têm persistido após o fim do conflito entre os dois blocos.
Nas vésperas do aniversário da Aliança, a França anunciou o seu regresso ao comando integrado da NATO, mais de 40 anos depois da ruptura com a Aliança, defendendo que o mesmo deve ser acompanhado de um desenvolvimento da Europa da defesa.
Recorde-se que a França deixou a estrutura militar da NATO em 1966 sob a presidência de Charles de Gaulle, mas continuou membro da organização e contribuiu fortemente para várias das suas operações militares.
Entretanto, ao mesmo tempo, a Rússia anunciou o rearmamento em grande escala das forças do país, incluindo a renovação do arsenal nuclear a partir de 2011, como resposta à NATO que, segundo Moscovo «alimenta as crises locais e as tentativas incessantes de desenvolver a sua infra-estrutura militar» perto das fronteiras russas.
Viriato Soromenho-Marques, Carlos Gaspar e Luís Fraga analisam o papel da Aliança Atlântica na actual ordem internacional.

«A NATO tem feito um esforço de transformação permanente»

Carlos Gaspar, director do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-UNL), considera que a «a Aliança Atlântica foi crucial para garantir a estabilidade internacional durante a Guerra Fria e decisiva para a vitória ocidental sobre a dupla ameaça do terror comunista e nuclear». «No pós Guerra-Fria, a sua vocação é garantir a continuidade da aliança das democracias ocidentais, que continua a representar o pólo de estabilidade no sistema internacional», sublinha. Salienta que «a Organização do Tratado do Atlântico Norte tem de acumular e articular as suas missões de defesa colectiva do território dos Estados membros com as novas funções de contenção e neutralização das novas ameaças — o terrorismo pan-islâmico, as tiranias e a difusão das tecnologia das armas de destruição massiça».Carlos Gaspar diz que a missão crucial da NATO neste momento «é a neutralização da ameaça terrorista pan-islâmica no Afeganistão e no Paquistão, que exige uma mobilização paralela de recursos militares — todos os aliados, incluindo Portugal, têm destacamentos militares no terreno — civis — a experiência da União Europeia é importante — e diplomáticos».E acrescenta que «a crise da aliança ocidental na sequência da invasão norte-americana e britânica do Iraque foi a pior crise da comunidade transatlântica desde a sua institucionalização, em 1949, mas foi possível ultrapassar essa crise, tal como as anteriores — a Aliança Atlântica é uma coligação de democracias cuja natureza é saber resolver as crises sem rupturas».Para o director do IPRI, a NATO «tem feito um esforço de transformação permanente»: «a missão no Afeganistão é o melhor exemplo desses esforços continuados de adaptação das estruturas, das doutrinas e dos meios da NATO à luta anti-terrorista, bem como das limitações nesse processo, nomeadamente as resultantes das condições que definem as regras de empenhamento de cada um destacamentos nacionais no teatro de operações do Afeganistão».Sustenta que a questão permanente da Aliança Atlântica «é a sua continuidade e a continuidade da Aliança Atlântica depende da sua capacidade para recuperar a sua posição central da defesa da estabilidade internacional, que só pode ser assegurada pelos Estados Unidos em conjunto com os seus aliados democráticos».
Carlos Gaspar remata, dizendo que a NATO «já completou o seu ciclo de alargamentos do pós Guerra-Fria e, neste momento, é crucial que possa existir uma efectiva articulação estratégica e militar entre a NATO e a União Europeia, que torne possível uma capacidade militar mais robusta da União Europeia, indispensável para assumir novas responsabilidades pela segurança e pela defesa regionais».

«Forte dose de oportunismo dos Estados da União Europeia»

Luís Fraga, professor no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), lembra que a NATO obedeceu a um determinado objectivo quando foi criada: «sustentar a Europa e, particularmente, os EUA contra uma possível agressão da URSS». «Havia nesta Aliança — aliás como em quase todas — uma certa dose de oportunismo mútuo: por um lado, a Europa garantia a sua segurança militar e, por outro os EUA, garantindo a sua segurança, garantiam a sua economia, porque mantinham uma série de Estados europeus “presos” ou dependentes da sua indústria de guerra. Quer dizer, como toda a gente sabe, a indústria de armamento americana serve para regular o desemprego nos EUA e, assim, manter a economia», explica.
Por outro lado, afirma que «o oportunismo dos EUA mostra-se evidente quando cria um pólo de conflito na Europa central, obrigando a URSS a fixar naquela zona tropas capazes de suster qualquer agressão que parta da NATO; desta maneira desvia doutros pontos do globo terrestre possíveis concentrações de ataque da URSS contra o seu território».
«Talvez as pessoas nunca tenham pensado que o caminho mais curto entre Moscovo e Washington seja pela chamada rota polar e não pela rota atlântica. Por outras palavras, deu “jeito” aos EUA concentrar uma ameaça na Europa central sobre a URSS para evitar que Moscovo concentrasse noutro ponto do seu próprio território forças capazes de ameaçar os EUA», acrescenta, realçando que «era com base neste raciocínio que os soviéticos sempre acusaram a NATO de ser uma aliança ofensiva e não defensiva como se pretendia fazer crer».
«Ora como a NATO nasceu primeiro do que o Pacto de Varsóvia está mais do que claro que se tratou de uma jogada estratégica dos EUA sobre a URSS, utilizando-se dos europeus», recorda.
Por isso sublinha que, hoje, «a NATO é uma “necessidade” para os EUA — pelas razões económicas que já abordei — e para a Europa, nomeadamente para a União Europeia».
Luís Fraga sublinha que desde a implosão do chamado Bloco de Leste que a NATO «perdeu a sua razão de ser essencial, ficando como uma simples aliança sem fim bem determinado». «Ela serve, teoricamente, para aquilo que os membros integrantes quiserem. Todavia é necessário perceber quem são, de facto, os membros integrantes da NATO. Na Aliança mandam, em primeiro — e eu diria — e em último lugar os EUA, pelas razões que são compreensíveis e que se consubstanciam no facto de serem eles, hoje em dia, quem procura o domínio militar global», garante.
Ou seja, «a NATO está posta ao serviço da política dos EUA, particularmente daquela em que lhe convém aparecer acompanhada por outros Estados na arena internacional». Contudo, «há também uma forte dose de oportunismo dos Estados da União Europeia em estarem ligados à NATO, porque individualmente não foram capazes de construir estruturas militares através das quais pudessem dispensar a NATO para a substituir por uma força ou aliança exclusivamente europeia». «E não foram capazes disso, porque a UE tem vocação económica e nunca definiu uma política uniforme de defesa e diplomática. Nesta medida, a NATO acaba por ser um instrumento de oportunismo da União Europeia e dos EUA para levar a efeito acções internacionais que se mascaram, muitas vezes, de pacíficas», sustenta.

«A locomotiva da NATO são os EUA e a sua política externa»

Para o professor universitário, as dificuldades mais notórias da NATO resultam dos «desencontros das políticas nacionais dos Estados que integram a Aliança, porque não há uma estratégia comum e um objectivo comum. A locomotiva da NATO são, como já disse, os EUA e a sua política externa».
Frisa que as divergências entre os aliados acerca da intervenção militar no Iraque não alterou a essência a Aliança Atlântica, «mas veio colocar a claro que a NATO é aquilo que eu disse anteriormente: um instrumento da política externa norte-americana, como, aliás, sempre foi. E continuará a ser se o complexo fabril militar norte-americano mantiver o seu papel de líder no mercado de armamento».
Refere que a NATO está «a procurar tornar-se uma força militar efectiva, mas, para combater o terrorismo é preciso compreender o próprio terrorismo». «Ele não é uma ameaça global; o terrorismo é uma ameaça pontual que define bem os seus alvos. Estes são escolhidos de entre os Estados que interferem mais notavelmente nos valores culturais do mundo islâmico. Mas, também, não é de todo o mundo islâmico; é naquele que se radicalizou», considera, adiantando que «a radicalização islâmica vem como uma resposta à interferência que o mundo ocidental e a sua cultura e os seus hábitos faz ou provoca na cultura islâmica».
Contudo, Luís Fraga garante que para compreender o fenómeno é preciso não esquecer o seguinte: «o líder espiritual islâmico é, também, líder político. Ora, este modelo confronta-se com o modelo ocidental onde o Estado é essencialmente laico e religião e política andam separadas. Quando o modelo ocidental interfere com o modelo islâmico gera neste último uma reacção que tem duas vertentes: uma interna, impondo a prática dos preceitos religiosos de um modo extremo e exagerado e outra externa que se materializa na contestação do modelo ocidental tido como corruptor».
Luís Fraga não tem dúvidas: «a solução para este confronto de culturas não pode ser militar — nem terrorista; tem de ser de ordem cultural. E, para isso, os militares da NATO teriam de ser instruídos para perceberem que as armas só aumentam o terrorismo. A solução para o terrorismo islâmico tem de ser encontrada dentro dos próprios Estados islâmicos, levando-os a separem-se dos exageros fundamentalistas».
Por fim, considera que a questão fundamental que se deverá definir no futuro «é a da defesa comum da Europa com apoio dos EUA e não o contrário, o qual tem sido, afinal, a linha de conduta da NATO ao longo dos anos».
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Viriato Soromenho-Marques, Professor Catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa:
«Falta uma clara definição dos objectivos e da hierarquia das prioridades estratégicas»

A Aliança Atlântica foi criada em 1949, no quadro da Guerra-fria e perante a necessidade de defesa territorial da Europa face à ameaça soviética. Hoje, 60 anos depois, como avalia o papel da NATO no actual quadro das relações mundiais?
A NATO encontra-se há duas décadas num estado de indecisão e latência. Ela foi moldada pelo contexto da guerra-fria, que foi a sua razão de ser, e também a razão do seu sucesso. A NATO contribuiu para evitar uma guerra central que teria sido o fim da história como a conhecemos. Mas, depois de 1989 entrámos num período de deriva que ainda não terminou.
Hoje, qual é o contexto de segurança internacional — marcado por ameaças difusas, múltiplos e novos actores, muitos deles não estatais — em que a NATO actua?
Os problemas são muitos, mas considero que o problema central é o da geografia política volátil que atravessa a Eurásia desde o fim da Guerra-Fria. É aqui, e não só em África, que a questão dos «Estados falhados» se coloca com gravidade extrema. Sobretudo quando percebemos a extrema vulnerabilidade à crise global do ambiente, e em particular às alterações climáticas, que muitos países desta ampla região manifestam. A multiplicação de movimentos migratórios por causas ambientais será uma realidade nas próximas décadas, colocando problemas de segurança a que a NATO não pode deixar de tentar responder.
Que dificuldades enfrenta actualmente a NATO?
Falta uma clara definição dos objectivos e da hierarquia das prioridades estratégicas. Seria útil, para reforçar a Aliança, se o debate pudesse assumir um carácter refundador. Mas esse passo só pode ser dado pelos Estados Unidos, ou, melhor ainda, pelos EUA e pela União Europeia.
As divergências entre os aliados acerca da intervenção militar no Iraque marcaram um dos piores momentos de crise da comunidade transatlântica. Isso alterou em alguma coisa a essência da NATO?
Enfraqueceu fortemente a liderança dos EUA, pois essa invasão foi também um acto hostil em relação a alguns dos mais importantes membros da NATO. Mas, agora, com a Presidência Obama e o regresso da França à estrutura militar da Aliança há condições para recomeçar a partir da base, reinventando as próprias regras.
Quais as principais questões que se colocam aos membros da Aliança e que importam para o futuro da organização?
Os Estados Membros da Aliança devem reconhecer, em primeiro lugar, o seguinte e fundamental ponto de consenso: o mundo é um lugar mais seguro com a NATO do que sem ela. A partir daqui é possível reatar o diálogo que integre as novas ameaças e desafios, como é o caso da segurança ambiental que não está devidamente tida em conta.
E para Portugal?
Para Portugal a NATO é importante por três razões principais: A) permite garantir um papel visível e imprescindível para o nosso país na relação euro-atlântica; B) assegura a capacidade de acções militares comuns da Europa, na defesa de interesses e valores comuns, que sem a NATO não seriam possíveis, dada a impossibilidade de construir uma efectiva Comunidade Europeia de Defesa (cujo falhanço, em 1954, nunca mais foi corrigido com seriedade); C) permite retomar, no plano da defesa, a tarefa de reorganização das Nações Unidas e dos seus dispositivos regionais. Em relação à NATO, a posição do nosso País deveria ser a de explorar as sinergias com outras áreas problemáticas da política internacional, em vez de tentar isolar a NATO como um problema específico. A nossa Era hoje será das sínteses. O tempo cartesiano da separação analítica das questões já passou.

Nota: Trabalho jornalístico da minha responsabilidade realizado há duas semanas sobre o aniversário da Aliança Atlântica e que aqui se publica.

Comentários

Um bom trabalho jornalístico que demonstra a integridade da jornalista.
Os meus cumprimentos
Ana Clara disse…
Obrigada Professor!