Pensamento Livre: o vinho não escapa ao fascínio


As coisas importantes e interessantes costumam ser albardadas com mentiras, mitos inofensivos, confusões naturais, enredos e episódios… blá, blá, blá. Duvido que alguém disserte acerca da posta de pescada cozida – em tópico autónomo – ou da técnica de passar a esfregona no chão da cozinha.

Texto: João Barbosa 
Jornalista e escritor sobre Vinhos*

O vinho – interessante e/ou importante – não escapa ao fascínio. Nas artes há imensas referências. Possivelmente, a maior consideração de respeito é a sua proibição no Islão. Todavia, é bebido no Paraíso islâmico.

O judaísmo tem preceitos muito rígidos quanto à sua fabricação, afastando os gentios e os não judeus das adegas. Em vários ritos cristãos, o vinho é a imitação mágica do sangue de Cristo.

A representação sagrada do sangue faz-se naturalmente com tinto. Contudo, nem todos os tons da paleta cromática do vinho traduzem com exactidão a coloração do fluído da vida.
É aqui que entra conhecimento enológico e agronómico. Há registos muito antigos – pelo menos desde os Romanos – de quais as castas preferidas e dos vinhos que com elas se faziam. Infelizmente, ainda não se encontraram as ligações com as actuais.

O conhecimento clássico não se perdeu por completo, na Idade Média continuava a saber-se fazer vinho. Talvez porque – especulo – a civilização romana fosse sobretudo urbana e o agricultor continuou a ter de alimentar gente.

Os reis cristãos da Península Ibérica não foram auxiliados apenas por cavaleiros e homens de armas vindos do centro e Norte da Europa. O estabelecimento de mosteiros foram fundamentais para fortificar e alargar o Cristianismo nos povos. As ordens religiosas trouxeram conhecimentos de diversa ordem, incluindo agrícolas.

Consta que o vinho palhete foi concebido para se obter uma coloração sanguínea para as eucaristias. Este é um daqueles exemplos em que a verdade e o mito se podem cruzar ou desmentir – vejo elementos das duas situações, mas tentarei abster-me de dissertar para além do comummente aceite.

Escrevo isto, porque, quando olho o sangue, não entendo onde está a proximidade com a coloração do palhete. Acrescento ao que sei – e julgo saber – o que ouvi de pessoas que muito conhecem de vinho e de história.

A Ordem de Cister, fundada em 1119, por Bernardo de Claraval, aplicou-se muito no desenvolvimento agronómico. Naturalmente, o vinho e as castas da Borgonha mereceram grande atenção. É muito provável que as castas que trouxeram não se tenham adaptado, devido às diferenças climatológicas.




Chamados por D. Afonso Henriques, em 1144, os monges Bernardos depararam-se com o problema de obter um vinho sanguíneo. As castas tintas que aqui encontraram conferiam uma tonalidade bem mais carregada do que a pinot noir borgonhesa – possivelmente, nessa época, seria uma avó dessa variedade.

Diz-se que os bernardos resolveram temperar, usando uvas tintas e brancas, dando origem ao palhete, que em tempos foi comum em Portugal. Não é, por acaso, que na região vitivinícola de Lisboa, se faça ainda o chamado «vinho medieval de Ourém», numa proximidade do Mosteiro de Alcobaça, onde regrou Cister. Outro aspecto de ligação é o amanho das vinhas, pois a tipicidade oureense é semelhante às representações medievais.
Não sei o que passou pela cabeça dos burocratas, mas a dada altura a produção de palhete foi desconsiderada. O «medieval de Ourém» é o resistente, que presentemente luta para não se diluir nos encepamentos modernos e técnicas contemporâneas.

Afirmo a estupefacção porque uvas de Vitis vinífera tanto são brancas quanto tintas. Acrescento que há castas tintas resultantes de cruzamento: A mais famosa é também a mais agricultada no mundo, a cabernet sauvignon, resultante da junção de cabernet franc (tinta) e de sauvignon blanc (branca).

Ainda abro mais a boca de espanto se penso na enorme colecção de produtos enológicos, que influenciam as características do vinho, autorizados. Não que isso esteja errado. Tolo é o julgamento do palhete.

Tem-se por garantia – obviamente é redutor e não absoluto – que a tipicidade e a antiguidade confirmam qualidade. A tradição e diferenciação traduzem-se na fórmula «Denominação de Origem Controlada». Ourém é caso único.

A depreciação do palhete é tanto mais absurda quando se sabe que o Vinho de Colares, o mais referenciado na obra literária de Eça de Queiroz, era palhete. Tal como o de Tormes, de «A cidade e as serras».

Confesso que sábios incultos – com o seu pensamento instantâneo plasmado e cristalizado em licenciatura e/ou doutoramento – e burocratas, zelosos de tudo o que alguém decretou – me irritam.

Agradecimento: O quarto texto do João no Pensamento Livre revela-nos muitos pormenores, que a História regista, da importância do vinho e da necessidade de o respeitarmos. Obrigada, João, pela forma tão peculiar com que o fazes. Foi um verdadeiro passeio alegre este em torno de um produto que é, inexoravelmente, parte integrante da Portugalidade. A porta do Platonismo, como bem sabes, está sempre aberta.

Leia os textos anteriores do João no Platonismo aqui, aqui aqui
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